segunda-feira, 15 de outubro de 2012

sem fim um fim

Cabia em certas ocasiões, era atraente.
Foi muito desejado e cumpria esse fetiche aos olhos de quem o visse.
Não era comum, costumeiro do cotidiano. Tão distinto, ficou distante.
Guardou –se no fundo, esquecido. Entre os outros era o mais rebuscado, tipo único.
Acompanhado, vivia em conjunto uma solidão do seu vazio existencial.
Era oco, sempre a espera de alguém a quem pudesse completar-se.
Pertencia somente a uma pessoa, a seus caprichos e exibicionismo.
Não o emprestava, em grande consideração a estima egoísta deste adorno.
Mantinha-se conservado para efeito de aparência, mas o tempo e a moda não esperariam.
Queria sair, desfilar, passar a confiança conferida a sua utilidade de índole fútil.
Era para um fim que se mantinha, porém no escuro, fechado, guardado e postergado, concluiu que fora menosprezado, justamente por seu excelente acabamento.
Raras ocasiões ocorriam para sua finalidade.
Assim , esse par de sapatos diferente, conviveu com os comuns, mas sua condição se tornou incabível e não encerrava mais nada em si, só o ar.
Desse compartimento de ar ficou cheio de um sentimento de ausência.
Desprovido de pés para calça-los, serviu para ocupar espaço e ser ocupado por nada.
Em vão, o estilo a quem serviu uma vez, agora imputou a perda.
Desprovido espera o dia de ser despejado.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

idade avançada

Ouve o que quer e o impróprio lhe interessa.
Escarafuncha com limites a vida dos outros.
Se indispõe com a dependência, estende-se o necessário.
Tem educação na medida que se posiciona sem grandes alardes.
Discreta, ocupa o que lhe é concedido.
Pele fina, rachada, veias verdes azuladas. Tremores, enxaqueca, intensa dor nas têmporas. Apoia-se em sua próprias mãos imprecisas.
Incomodo costumeiro, cerra os olhos para cessar.
Dia a dia usa sapato de salto baixo, meia três quartos em qualquer temperatura.
Palavras cruzadas, nível cobrão. Descobre muitas palavras, não conta histórias.
Rotina indefectível a sua maneira conta seu modo.
Tem vida longeva, mas distante de hábitos saudáveis.
Caminhar e tomar sol não lhe agrada ao invés, mofa na poltrona.
Rejeita verduras, legumes e saladas, gosta de pasta.
Não absorve muito líquido.
Óculos ensebados mostra o que não pode ver.
A cada aniversário não sabe se chora ou se ri.
Sua gratidão pela festa quase dispensa o motivo.
Tem um medo que não cabe em si.
O brilho de seus olhos expressam um enigma.
Por que está aqui?
Quem mais amou já se foi.
É muito querida e doce.
Também velha ranzinza.
Dorme vendo televisão.
Suas dificuldades pioram.
Não é fácil a vida.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Mãos frias de defunto levanta arca com as próprias cinzas.
Veias inviáveis articulam-se no irreal.
Corpo opaco inaugura vida da morte.
Abatimento físico mescla em seu amarelado a putrefação dos fundamentos.
Suporte do estado terminal engaveta questões.
Lágrimas corrompem o embalsamento, mas correm soltas como doença virulenta.
A morte é o êxito, em termo de saída.
Substância morta vive, doa-se, desintegra-se, decompõe.
Existência do fantasma positivo.
Pegadas vultuosas tracejam uma silhueta, do espaço em branco uma biografia.
Desamparo corporificado na penúria de respostas do futuro.
Presente ausente, marca o tempo.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Corpo máquina

Antônia é uma mulher alta, pernas compridas saindo de quadris largos. Caminha desajeitada pelas ruas, as costas largas se inclinam um pouco para se ajustar ao tamanho médio da população.
Desconfortável como qualquer um, utiliza-se de disfarces que foram incorporados à seu jeito. De relação íntima com os objetos percebe-se um rebuscamento de hábitos, e em situações que se sente ameaçada, recorre a sua mania de alisar e envergar os cílios para cima, trejeitos que realçam um charme peculiar.
Enriquecida de detalhes, portadora de uma agenda descritiva de atividades, cumpridora de datas e prazos e precavida chegou o dia de apurar junto com o mecânico a revisão de seu carro: checar o nível de óleo, água, fluído dos freios, da direção hidráulica.
O veículo é a extensão máxima de sua intimidade, usado para trabalhar, passear, carregar pessoas queridas e coisas. Trabalha em São Paulo e mora fora do município, por isso seu veículo sempre munido para suprir pequenas necessidades e pequenos prazeres para essas viagens cotidianas.
O carro ficou na oficina e ela foi embora listando novos itens na sua cabeça.
Pelo período que seu carro esteve retido, tomou ônibus, fez caminhadas e cumpriu a falta do veículo. Esquadrinhou ideias, oxigenadas no bater de pernas, circulou com uma nova mente, passou revista a locais antes percorridos no automóvel e correu com seu corpo máquina.
No horário de almoço, gostava de ver o mar de pessoas esperando cruzar a rua. De sua altura e distância do outro lado observava a ansiedade de alguns, conversas entre homens de terno, alguns olhando cada carro que passa assim como máquina de escrever, que retoma o ponto inicial, chega ao fim e retoma novamente.
Plantada sobre suas pernas, um reboliço próprio de quem é contido de seu ímpeto, que ao sinal verde, atravessa a rua provocada.
À medida que avança, criaturas vem em sua direção, figura que contém homens das mais variadas estaturas, cabelos e roupas.
O mar com seu fluxo de cabeças diversificadas, os atarracados realizavam seu desejo, desses com muito ou pouco cabelo, curto ou comprido, preto, castanho claro ou escuro, loiros, carecas.
A cada passo firme e largo era como se engendrasse como uma boca voraz, uma cabeça de homem para dentro de suas partes baixas. Seu assoalho pélvico tinha a sensação de uma massagem imaginada e excitante que a fazia deslizar em direção ao meio fio.
Equilibrada em seus saltos, movimentava em sua caminhada uma série de músculos que contraiam e descontraiam e a encaminhavam a um delírio.
Sua travessia, desengonçada, deglutiu múltiplas cabeças, porém não concreto quanto o asfalto, que esgueirou para atingir olhares.
Mas reteve na retina, imagens e fluidos escorreram embaixo, sinal de saúde.
Repousou, instantes inteiros, suas costas sujeitadas.